domingo, 10 de abril de 2011

O DNA DO SAMBA CAMPINEIRO

quinta-feira, 12 de junho de 2008



Em 1926*, num cortiço do Centro de Campinas, um negro com um pandeiro foi preso. Para a polícia não importava que, horas antes, ele estivera trabalhando na manutenção da linha ferroviária da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Depois da denúncia anônima, os soldados o encontraram no quintal, sem camisa e um pouco bêbado, tocando um pandeiro na presença de outros negros, que dançavam e cantavam misturando português a um dialeto africano. Foi levado pelo camburão e, dias depois, o corpo sem vida foi encontrado nos trilhos do trem. A repressão ao samba e aos sambistas era, fundamentalmente, a repressão aos negros e sua cultura. . Não faz muito tempo que homens deixaram de morrer pelo simples fato de andarem com um instrumento musical debaixo do braço. O negro sem nome, achado morto na ferrovia, poderia muito bem ser o avô ou o pai do homem miúdo, de gestos tímidos e educados, que dá aulas de cavaquinho para sobreviver, em seu humilde apartamento do CDHU. Seu Nenê do Cavaco abre a porta de casa com um largo sorriso, deixando entrever um único dente na boca. Ele se chama Álvaro Matheus, mas é inútil chamá-lo pelo nome de batismo. Para os campineiros ele é apenas Nenê, 71 anos, o maior sambista vivo da cidade, compositor campeão de muitos carnavais pela Estrela D’Alva - a escola de sua paixão. . Na mesa da sala, ao lado de uma caixa de sapatos repleta de fotografias antigas, está um velho cavaquinho com seu nome gravado. Um cavaquinho sem marca, "desbotado de sereno" - como ele diz. E é quando ele acaricia as cordas do instrumento que a memória se acende e a história vem à tona. Se no tempo da escravidão os negros tremiam de medo ao ouvir falar em Campinas - era nas fazendas daqui que os "fujões" recebiam os piores tratamentos - no tempo em que Nenê era jovem, lá pelos idos dos anos de 1950, a abolição ainda não havia sido assimilada completamente pela sociedade. "Um dia, entrei no bonde com o cavaquinho na mão e as senhoras brancas se levantaram quando me sentei. Aquilo me deixou muito triste. Eu então me pus de pé e disse para que elas se sentassem novamente, que eu ia descer". . Quando o samba já comia solto nos fundos dos quintais e nos terrenos baldios, Campinas ainda era dividida ao meio. Pela rua Francisco Glicério só transitavam os negros; os brancos circulavam pela rua Barão de Jaguara. Mas, recorda Nenê, aos sábados e domingos todo mundo se encontrava no Largo do Rosário, um "território neutro" onde aconteciam rodas de samba. "Quando brancos e pretos se encontravam no samba, não tinha esse negócio de cor de pele; a sociedade evoluiu e foi aceitando a mistura. Hoje sou avô de preto e avô de branco. Foi o samba que ajudou a superar o racismo", diz. . Ecos da história . O samba, a mais forte instituição nacional, veio de longe. Da África antiga veio a semente, germinada nos porões escuros e úmidos dos navios negreiros, que despejaram, aos milhares, negros no território brasileiro. Mas o que os primeiros africanos aqui cantavam, ainda não era o samba. O que dançavam, tampouco. O samba, essa fortaleza, nasceria tempo depois, do sincretismo e da adaptação de uma cultura milenar a uma nova realidade. É provável que a origem da palavra "samba" esteja no desdobramento ou na evolução do vocábulo "semba", que significa "umbigo" em quimbundo (língua de Angola). Historiadores registram primeiramente a dança - forma que teria antecedido a música. De fato, o termo "semba" designava um tipo de dança de roda praticada em Luanda e em algumas regiões do Brasil, sobretudo na Bahia. Do centro de um círculo e ao som de palmas, coro e objetos de percussão, o dançarino solista, em requebros e volteios, dava uma "umbigada" num outro companheiro a fim de convidá-lo a dançar, sendo substituído então por esse participante. . Em Campinas, o samba urbano se desenvolve na segunda metade do século XIX, com os escravos e seus descendentes nas fazendas de café da região. As manifestações mais antigas de que se têm notícia no interior paulista são o samba-lenço e o samba-de-bumbo, que geraram o samba "moderno" que conhecemos hoje. Todos os sambistas campineiros - aqueles que, pela idade e experiência, inserem-se na chamada "velha guarda" - trazem consigo ecos dessa história. Se não foram protagonistas dos primeiros batuques, herdaram da família o gene dessa trajetória de luta e resistência cultural. . Seu Nenê se lembra de quando o samba saiu das ruas e ganhou os palcos. Em 1964, no imponente Theatro Municipal Carlos Gomes, ele foi o escolhido para acompanhar o "cantor das multidões" Orlando Silva. "Foi o primeiro grande show de samba que eu me lembro de ter visto num teatro; nessa época, o samba já não era marginal, a classe média e os estudantes começaram a ver qualidade no que a gente fazia. Eu acho que foi mais ou menos nessa época que o samba entrou no mercado. Como tudo na vida, teve seu lado bom e seu lado ruim". . O lado ruim foi a perda progressiva dos laços culturais que mantinham várias gerações ligadas à tradição. "Dói pensar na decadência das escolas de samba. É só desunião. Ninguém mais respeita a cultura. O sambista só quer saber de dinheiro. Eu estou velho demais para continuar segurando a tradição sozinho. Acabou, acabou...", lamenta Nenê, olhos perdidos no vazio. Para ele, a Estrela D’Alva, escola de samba à qual dedicou toda sua vida, é uma das poucas que ainda mantém minimamente unida a comunidade em torno de seu estandarte. "Quando a escola perde a comunidade, perde a razão de ser. O carnaval de Campinas empobreceu quando as escolas se distanciaram do povo", afirma o sambista." . "Não dá para discordar do Nenê. O que você pode esperar de um passista que desce a avenida com os sapatos sujos? O que esperar de uma escola com fantasias sem brilho? De sambistas que desfilam bêbados? O samba é elegância, conhecimento e respeito. Se não tem essas três coisas, não tem samba". Quem fala agora é Josué de Sousa. Ele é, provavelmente, o mestre-sala mais antigo do Brasil em atividade. Há 43 anos que o funcionário público desenha e costura a própria fantasia e desce a avenida no carnaval ao lado de Iracema, sua mulher e porta-bandeira. Aos 60 anos de idade, Josué é o mais novo dentre os velhos sambistas que fizeram a história do samba campineiro. Último representante de um tempo em que sambista tinha orgulho de se vestir bem, ele diz que a elegância está relacionada também à perseguição que os sambistas sofriam, até a metade do século 20. "O samba era nosso orgulho; nós queríamos mostrar para a sociedade que os pretos podiam fazer samba e se vestir como homens de bem. O preconceito era muito grande, tínhamos de nos valorizar". . Em meio ao cafezinho preparado por Iracema e a pitadas do inseparável rapé, Josué se lembra das congadas que presenciou na infância, quando ainda morava em Machado, cidadezinha mineira onde nasceu: . "Essa festa teve boa/ teve de deixá sôdade/ vamo nós pedir a Deus/ e à senhora do Rosário/ ao senhor São Benedito/ proteção pro meu trabalho" . Nas congadas de Minas Gerais, onde se formou, o menino de calças curtas tocava bandola. Foi o seu primeiro contato com o folclore e a descoberta de sua paixão pelo batuque. Ao chegar a Campinas, em plena ditadura militar, foi preso numa batida policial no Viaduto Cury. "Eu não tinha envolvimento político nenhum, mas mesmo assim fui levado. Era recém-chegado na cidade, aquilo me marcou muito", conta. A prisão, ao menos, rendeu-lhe a amizade de um soldado e um emprego de guarda noturno, pouco depois. "Eu fazia a ronda na região do Mercado Municipal", relembra. . Na época, todos os sambistas freqüentavam o mercadão. O Bar do Pachola, já naquele tempo, abrigava as melhores rodas de samba da cidade. Como a repressão não era mais racial e sim política, ninguém estranhou a presença de um negro fardado nas rodas. Até porque ele era um simples guarda noturno. "Aí começo a me envolver com o samba e não largo mais". Fundador, diretor e mestre-sala com passagens por várias escolas de samba de Campinas - Mocidade Independente, Império do Samba, Rosa de Prata, Unidos de Santa Lúcia, Princesa de Madureira, Ponte Preta e Vaiquemké, entre outras -, Josué critica o descaso com que as escolas são tratadas por seus diretores. "O carnaval é um teatro de rua, você tem que fazer com que o público entenda o que está sendo mostrado na avenida. Para escrever um enredo é preciso muita pesquisa, não é brincadeira. Infelizmente eu tenho uma posição radical: penso que deveríamos acabar com as escolas de samba inexpressivas, essas que só existem para render benefícios a um grupo ou família. Se Campinas tivesse apenas três ou quatro escolas mais tradicionais, o carnaval voltaria a ter o luxo e o brilho do passado", acredita. . É bom deixar claro - a pedido de Iracema - que um carnaval decadente não significa ausência de bons sambistas. "Campinas tem muita gente boa envolvida com o samba. E samba não é a mesma coisa que Carnaval; são coisas que se completam, mas que podem andar separadas", diz ela. O que deveria ser uma festa autêntica acabou virando mercadoria. Josué concorda, lembrando que a fama de Campinas ser celeiro de bambas veio muito antes das escolas existirem. Nos tempos dos cordões, até a metade da década de 1940, ele garante, o "bicho pegava". Os cordões tinham nomes singelos: Vasquinho de Ouro, Marujos, Leões da Vargem. O Nem Sangue, Nem Areia arrastava até duas mil pessoas. Alguns cordões saíam com 80 surdos na bateria. "Nas festas de Pirapora a maioria dos integrantes era de Campinas. A cidade era muito respeitada. Depois veio o carnaval oficializado e a coisa começou a desandar", diz, diante do móvel onde guarda os troféus conquistados como mestre-sala desde 1961, data de seu primeiro desfile. . Sem reconhecimento . Deixemos a majestade de Josué e Iracema no Jardim Santa Lúcia e vamos encontrar três amigos da pesada no botequim da Estação Cultura, no alto da rua 13 de Maio. Ali, diante da estrada de ferro da Fepasa, as recordações se aguçam. O trem, que trazia e levava trabalhadores de todas as partes do País, já não existe mais. Mas ali, naqueles trechos de trilhos, muitos negros foram assassinados ou se suicidaram. Proibidos de trabalhar, de cultuar os orixás e de fazer samba, muitos caíram na mendicância. E se até pedir esmola era proibido, o que restava então? O primeiro a chegar é Zitão, apelido pelo qual é conhecido Lázaro Altino, 63 anos, percussionista que marcou época. Ele não viveu os anos mais violentos da repressão, mas lembra-se de histórias escabrosas transmitidas pelos avós. "Naquele tempo bastava ser negrão para trancar matrícula na Terra", brinca, com sua peculiar rapidez em criar expressões engraçadas. . Apoiado no balcão de mármore do bar, ele sorve a cerveja gelada à espera de Edgar de Souza e Alfredo Gama, amigos que não vê há muito tempo. "A saudade é o pior sentimento do mundo e, ao mesmo tempo, o melhor. A gente mata a saudade e ela sempre renasce pra perturbar a nossa velhice", diz Zitão. Nascido no Cambuí, bairro negro que hoje ostenta ares aristocráticos, ele conta que muito samba era feito nos terrenos baldios. "No sábado à noite a negrada abria uma clareira no meio do mato, num campinho que havia na rua Barreto Leme, improvisava um bico de luz no alto de um bambu e ficava ao redor da fogueira, bebendo cachaça e cantando até segunda-feira. Aquilo sim era samba, o resto é boi com abóbora", define. . "Lord" Edgar e Gama chegam juntos. O primeiro tem 66 anos e perdeu a visão há dez. Caminha com dificuldade, auxiliado pela filha Daniela, que o leva ao encontro do amigo. Gama tem 70 anos e traz consigo um repique, na esperança de reviver velhos tempos. Juntos, formaram um dos melhores times musicais da cidade, no tempo do grupo Acadêmicos do Samba, em que os bares não fechavam cedo e a música comia solta até o sol nascer.Depois dos abraços, as lembranças. "A maior parte dos nossos amigos de samba sumiu ou morreu. Mas continuam vivos aqui dentro", diz Edgar, apontando o coração. Até hoje ele é um dos principais nomes da história da Voz do Morro, uma lendária escola de samba de Campinas que não existe mais. "Foi a escola mais organizada que nós tivemos, os desfiles eram lindos, havia amor pelas cores da nossa bandeira". . Presidente de escolas importantes e vencedor de inúmeros carnavais na função de apitador, "Lord" Edgar se recorda com especial carinho do carnaval de 1970, que ganhou pela Mocidade Independente. "Era o meu primeiro ano como presidente. Saímos com 700 integrantes, sendo 200 só na bateria. Desconheço outra escola que tenha saído com tanto luxo. Naquela época ainda não havia tanta gente metendo a mão na grana das escolas, a gente conseguia fazer um carnaval decente". . Gama não gosta de falar sobre escola de samba. De todos eles, é o único que não foi ligado a nenhuma agremiação. "Não gostava daquele negócio de compromisso com escola; meu negócio era tocar na casa do Darcy Relojoeiro, onde rolava uns pagodes ótimos", explica. Em meados da década de 1960, ele se aproxima dos regionais de choro, nos quais deixou saudade como percussionista. "Samba e choro sempre estiveram muito ligados. Se a gente for analisar, vai ver que a origem é quase a mesma", diz. . A tarde se arrasta em recordações e a conversa ganha contornos melancólicos, como o entardecer da província que Campinas deixou de ser. Ainda há muito que ser dito: o Carnaval em que a Ubirajara desceu a avenida todinha de branco, cantando um samba de Geraldo Filme; a morte de Beiçola, o maior dos presidentes; o dia em que Zuza, Abílio e Otávio Pretinho resolveram fundar a Voz da Vila; por onde andarão Cinema e Jaguari? São temas, quem sabe, para uma próxima reportagem. Hoje, a velha guarda do samba campineiro detém a memória de um samba que desapareceu em meio ao crescimento da cidade. De um samba onde cabiam frigideira e tamborim de couro de gato. De um samba que lutou pelo direito de continuar existindo. E, ao contrário do que ocorre no Rio de Janeiro e mesmo em São Paulo, esta mesma velha guarda não tem espaço de atuação ou reconhecimento que lhe imortalize, ao menos, em sua própria cidade. A maior parte dos velhos sambistas ainda tem de batalhar o pão de cada dia. Outros, em melhor situação, se queixam da falta dos amigos que já se foram e do ritmo de cidade grande que Campinas adquiriu - o que tornou a noite mais perigosa e o samba menos puro. . A cerveja está paga. Antes de se despedir dos amigos e tomar o ônibus para casa, Zitão, ao tamborim, puxa um samba de Wilson Batista. Edgar no reco-reco e Gama no repique o acompanham, como nos velhos tempos: ."Eu sou assim/ Quem quiser gostar de mim, eu sou assim/ Meu mundo é hoje/ Não existe amanhã pra mim/ Eu sou assim/ E assim morrerei um dia/ Não levarei arrependimentos/ Nem o peso da hipocrisia/ Tenho pena daqueles/ que se agacham até o chão/ enganando a si mesmos/ por dinheiro ou posição/ eu nunca tomei parte/ nesse enorme batalhão/ pois sei que além de flores/ nada mais vai no caixão" . (Bruno Ribeiro. Publicado originalmente no jornal Correio Popular. 14/ 11/ 2004) . Referências: *(Cléber da Silva Maciel. Discriminações Raciais em Campinas. Editora da Unicamp, 1987)

Um comentário:

  1. Adorei essa poética retrospectiva da cultura do samba campineiro. É muito bom poder contar com guardiões de nossa história.Parabéns!

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