domingo, 10 de abril de 2011

O Samba tem nome


Campinas, 11/02/2007.


"Jornal Correio Popular Caderno C"


O samba tem um nome


/ PERFIL /


Aos 72 anos, Nenê do Cavaco


conta histórias do Carnaval de Campinas



Bruno Ribeiro

DA AGÊNCIA ANHANGÜERA




Aos 72 anos, mais de 50 dedicados ao samba, Álvaro José Matheus é o nome mais importante do Carnaval de Campinas. Muito mais conhecido pelo apelido, Nenê do Cavaco é compositor campeão de muitos desfiles pelas escolas de fé - Princesa D'Oeste, Madureira e Estrela D'alva. É também autor de sambas gravados por intérpretes de peso e a maior referência local quando o assunto é cavaquinho. Nove entre dez sambistas da cidade tiveram com ele as primeiras lições do instrumento - o que conferiu ao samba campineiro uma marca percebida a partir da década de 70.No início do mês, a diretoria do bloco carnavalesco City Banda entregou ao mestre uma placa em reconhecimento à sua contribuição ao samba de Campinas. Mais de mil pessoas participaram da entrega da placa. "Para mim foi mais importante do que a Medalha Carlos Gomes", disse, em entrevista ao Caderno C concedida em sua casa. Testemunha ocular do crescimento de Campinas, Nenê é do tempo em que o samba ainda era "coisa de vagabundo" e a segregação racial dividia o Centro em duas partes: na Rua Barão de Jaguara só circulavam os brancos; na avenida Francisco Glicério transitavam os negros."Eu demorei muitos anos para andar livremente pela Barão; a gente sofria muito constrangimento", recordou. O samba, segundo Nenê, foi um dos responsáveis por acelerar a convivência entre brancos e negros na cidade. "Os pretos faziam uma batucada no Largo do Rosário, que era um território neutro. Eu tinha um amigo branco que tocava pandeiro e ele se misturava com a gente. Aos poucos a praça virou um ponto de encontro, os brancos foram se acostumando e tudo acabou em samba", afirmou. Enfrentando problemas de saúde, Nenê foi obrigado a interromper temporariamente as aulas particulares de cavaquinho que ministrava há cerca de 20 anos - desde que abandonou a noite. Morando num apartamento humilde do CDHU, o sambista é, possivelmente, o compositor de sambas de enredo que mais vitórias conquistou no Carnaval de Campinas em todos os tempos. De memória ele cita oito títulos de campeão. "Mas deve ter sido bem mais", frisou a mulher Terezinha, guardiã da caixa de fotografias antigas que ele faz questão de ter por perto, para ilustrar a conversa. Afastado das escolas de samba desde o fim dos anos 80 e início dos 90, quando, segundo ele, o Carnaval entrou em decadência, Nenê do Cavaco vai acompanhar os desfiles de casa. "Meu coração é sempre da Estrela D'alva, mas não tenho mais saúde para descer a avenida", lamentou. Ele, porém, não perde a esperança de que as escolas voltem a ser como eram antes - luxuosas e donas de autoridade moral para falar em nome do samba. "Se as pessoas mudarem para melhor, o Carnaval também muda. É tudo questão de caráter. É que hoje em dia o samba é o que menos importa dentro das escolas. Isso é o que me deixa mais triste", comentou.


Confira abaixo os principais trechos da entrevista realizada com o sambista campineiro.



Caderno C — Qual é a recordação mais antiga que o senhor tem do samba em Campinas?


Nenê do Cavaco — A minha memória é muito boa pra lembrar dos fatos, mas pra data sou ruim. Mas me lembro que quando comecei a fazer samba, Campinas era tão racista que preto não podia subir no bonde quando tinha senhoras brancas nele. Muitas vezes eu ia pra escola a pé, porque não me deixavam subir. E andar com cavaquinho debaixo do braço também não era boa coisa na cabeça da sociedade; eu tinha que esconder o instrumento numa sacola. Mesmo assim nunca deixei de fazer samba, porque era minha vida.


O senhor nasceu em Campinas?


Não, eu nasci em Pernambuco, mas fui registrado em Itirapina como sendo de Campinas, no dia 26 de outubro de 1934. Então sou campineiro, porque cheguei aqui menino ainda e me criei nesta cidade.


E como foi que o senhor começou a tocar cavaquinho?


Eu tinha oito anos de idade quando ganhei de presente meu primeiro cavaquinho. Naquela época a família me levou pra Indaiatuba, para tocar num grupo formado só por crianças. Aí eu achei que tocava bem. Só na mocidade é que fui me interessar em ter aulas com um professor, porque veio a necessidade de tocar na noite e ganhar meu dinheiro. Só fui começar profissionalmente aos 16, 17 anos... ‘


Qual a maior homenagem que o Senhor já recebeu?


Foi a placa da City Banda, pelos serviços prestados ao Carnaval.



Nesta parte da entrevista, Nenê do Cavaco conta histórias do Carnaval de Campinas das décadas de 40 e 50, faz comparações entre aquela época e hoje, e conta como se deu a decadência do Carnaval campineiro.


Caderno C — E seu envolvimento com escola de samba, como é que se deu?


Nenê do Cavaco — Isso foi o seguinte. Antes das escolas eu me envolvi com os cordões e os blocos de rua. Naquela época, isso na década de 40 e 50, os blocos arrastavam mais de mil pessoas. As baterias saíam com 80 surdos, era uma beleza. Eu saía no Leões da Várzea, no Marujos e no Nem Sangue, Nem Areia. Só mais tarde, quando me mudei para o (bairro) São Bernardo é que fui levado para a Princesa D’Oeste, minha primeira escola. Quando ela desceu a avenida cantando um samba meu, chorei feito criança.


E como eram os desfiles daquela época em comparação com os desfiles de hoje?


Bom, se você for falar nos desfiles do Rio e de São Paulo, vai ver que hoje é bem melhor. Isso falando de estrutura, né?


Mas em Campinas a situação é outra. Antes a gente tinha um Carnaval de verdade. As escolas desciam com luxo, as fantasias deixavam as pessoas de queixo caído. E além disso o samba era bem feito e bem tocado, naquele tempo tinha batuqueiro bamba. Hoje em dia é essa tristeza que todo mundo sabe.


E por que o Carnaval de Campinas entrou em decadência, na sua opinião?


Na minha visão, a culpa não é só do poder público, porque antigamente a gente desfilava com o esforço da comunidade também. O que eu acho que aconteceu é que a mentalidade das escolas mudou, hoje em dia só querem saber de dinheiro e não estão nem aí para a beleza do desfile. Não tem mais comunidade, o que existe é só um grupo pequeno tomando conta da verba. Não estou colocando todos no mesmo saco, mas a verdade é que a maioria não quer nem saber de samba. Eu sou meio linguarudo mesmo, não liga não.


E qual foi o desfile inesquecível do Carnaval campineiro?


O mais lindo de todos foi o da Ubirajara, que infelizmente não existe mais. A escola desceu todinha de branco, não tinha um só detalhe de outra cor. E ela veio cantando um samba feito especialmente pelo Geraldo Filme, que já era um grande compositor de São Paulo. Esse eu me lembro com lágrimas nos olhos. Mas dos desfiles que tiveram a minha participação direta não posso esquecer do primeiro que ganhei com a Estrela D'alva, que para mim é a rainha das escolas de samba de Campinas. Enquanto o Beiçola (presidente lendário da escola) viveu, ela foi imbatível.


O senhor ainda participa do Carnaval campineiro?


Não mais. Não participo há mais de dez anos. Primeiro porque não tenho mais condições físicas; não agüento ficar quatro horas em pé e não posso fazer muito esforço de saúde. Pra não atrapalhar meus companheiros, prefiro ficar em casa. E tem também que não me sinto à vontade como antes, né? Por conta das críticas que eu tenho em relação às escolas.


Qual seria a solução para o Carnaval de Campinas voltar a ser o que era antes?


Um pouco de investimento da Prefeitura ajuda; mas o mais importante é ter gente nova e honesta na direção. Tem que trabalhar o samba com a molecada dos bairros, criar de novo o espírito de comunidade. Porque se o sujeito não tem amor pelo lugar onde mora, não vai ter amor pela escola. Quem quer fazer parte de uma escola de samba tem de trabalhar por ela o ano todo e não só em fevereiro. Mas ninguém quer dar o sangue pelo Carnaval, o lema é “farinha pouca, meu pirão primeiro”.Mesmo afastado dos desfiles o senhor foi homenageado com uma placa pela City Banda, pelos serviços prestados ao Carnaval.


O que representou essa homenagem?


Deixa eu dizer uma coisa. Essa foi a homenagem mais bonita que eu recebi na vida. Dizem que quem ganha a Medalha Carlos Gomes não precisava ganhar mais nada, porque ela é a maior honraria que alguém pode receber em Campinas. Pois bem, eu tenho a Medalha Carlos Gomes, mas ela é oficial. O maior reconhecimento, eu acho que o reconhecimento que todo artista busca, é o popular. E a homenagem que eu ganhei do povão foi a que me deu mais alegria.

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